A última porta

em




Mais uma vez.

Mastigava aquela carne macia com todas as cáries que lhe pertenciam por direito, ronronando exemplarmente, como todo marido habitualmente deve fazer. Não é que não estivesse disposto a conversar, só não via o porquê de faze-lo durante a única refeição verdadeira do dia. Além, sabia perfeitamente como teria sido o dia de sua mulher: casa, contas, filhos, a sogra que havia ligado…

-Sua mãe ligou.
-Eu sei.
-Como sabe?
-Ela sempre liga. Alguma novidade?

Pausa. Rancorosa. Pergunta estúpida e sem nenhuma novidade. Mas a novidade de hoje é que havia acontecido algo àquela tarde, que a fez explodir por dentro mas, contando, o ineditismo e a tempestade que aconteceram dentro dela passariam sem deixar rastro.
Investigou, uma vez mais, a dentição do marido: agora aberta, suja de feijão e ovos mexidos. E aquele ronronar incessante.
Disparou:

-Faltou luz, mas era dia.
-O que?
-Você está surdo?
-Não, ouvi perfeitamente. Você disse que faltou luz durante o dia.
-Não, querido. –Após pronunciar a frase percebera o tom sarcástico que imprimira àquela que fora uma palavra de tanto afeto entre os dois namorados. Incrível como os anos invertem certas semânticas, pensou. –Eu disse que “faltou luz, mas era dia”.
-Ah. –Respondeu o marido, sem muita convicção.

Mas isso não explicava o motivo de tantas velas apagadas pela casa.

-Ora, Valéria, você desperdiçou velas durante o dia? Depois pergunta para onde vai o meu dinheiro…
-Nosso dinheiro! Eu também trabalho!
-Trabalha? Então me conta onde tem escondido seu salário… –caçoou o marido da dona-de-casa.
-Trabalho cuidando das coisas que você não quer ver, que você não quer enxergar. Trabalho para manter funcionando tudo o que você finge ignorar, mas que se parassem, por um só momento que fosse, sua vida desmoronaria, sem dúvida! –e, após um tempo de silêncio total, balbuciou como que para si mesma: -Trabalho para as coisas que nem eu mesma percebia. Até…

até hoje à tarde, ela quis dizer. Mas não pôde.
O marido, intuindo que o desabafo terminara, retomou a comida. O filé, o arroz, o feijão e o ovo já haviam sumido do prato. Restavam os músculos, jogados ao canto.
Valéria olhava a cena à sua frente. Disse uma palavra sequer. Nada. Bastava que os olhos falassem, como falaram, suplicando para que o homem puxasse aqueles nervos para si, mastigasse com toda a verdade que pudesse, não negligenciasse nada, nada do que poderia acontecer. Nada do que acontecia ao seu redor. Não disse nada. Mas era apenas o que bastava para que seu amor por ele voltasse mais forte, existisse novamente. Sabia que a única forma de recomeçar, seria se, por livre iniciativa, o homem não negligenciasse nada do que ela lhe oferecia.

Humberto espreguiçou-se, bocejou, arrotou. Finalmente, levantou-se da mesa fechando atrás de si uma porta que jamais se reabriria.

1 comentário Adicione o seu

  1. Andressa disse:

    o dom de ser cronista: coisa mar linda!Se quiser, visite a minha casa de vez em quando, sempre tem café e bolo de fubá.um outro tipo de florinté!

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